Primórdios
Antes mesmo da chegada dos portugueses, os espanhóis já conheciam a terra e a gente da costa norte-riograndense, no percurso da suas jornadas exploratórias. Juan de La Cosa e Américo Vespúcio a partir do delta do rio Assu, registraram em seus mapas contornos de acidentes geográficos assinalados por La Cosa como norte-riograndenses.
O Rio Grande do Norte certamente foi um dos primeiros pontos visitados do litoral brasileiro pelas expedições portuguesas enviadas ao Brasil a partir de 1500. A de Gaspar de Lemos chegou a 16 de agosto de 1501, e chantou o marco de pedra lioz da atual Praia do Marco, em Touros. Também os franceses, na mesma época, começaram suas incursões na área, estabelecendo o comércio e tráfico do pau-brasil com os indígenas.
Após os 30 primeiros anos do Brasil, considerados por alguns historiadores como um “período de negligência”, o eixo central das preocupações lusas transferiu-se, de forma mais categórica, do oriente para o novo mundo – tendo em vista diversas razões de natureza militar, política e econômica. Como consequência, foi instituído o sistema das capitanias hereditárias, dividindo o Brasil em imensos lotes.
A capitania abandonada
A capitania do Rio Grande foi doada pelo rei Dom João III ao Feitor da Casa da Mina e da Índia, cronista e historiador, João de Barros. Eram 100 léguas de terras que se estendiam desde a Bahia da Traição (PB) até o rio Jaguaribe, limite com o Ceará.
Além desta doação, João de Barros recebeu mais 50 léguas de terras em parceria com Aires da Cunha, para os lados do Maranhão. Em 1535, os dois se associaram a um terceiro donatário (Fernando Alvares de Andrade) unindo forças para montar a expedição que pretendia tomar posse de suas terras contíguas, totalizando 225 léguas em atual solo brasileiro.
João de Barros, já idoso, jamais embarcou nessa expedição e jamais pôs os pés no Brasil. Em novembro de 1535, partiu Aires da Cunha com a presença dos dois filhos de João de Barros e um representante de Fernão Álvares. Entretanto, a expedição jamais conseguiu desembarcar nos lotes de João de Barros (RN), devido à forte resistência dos índios Potiguares, aliados aos franceses. Tentaram então aportar nas terras de Fernão Aires, sendo impedidos por novas adversidades que culminaram com o naufrágio da nau capitânia da expedição e a morte de Aires da Cunha em águas do Maranhão. Uma segunda expedição, igualmente mal sucedida, foi empreendida pelos filhos de João de Barros provavelmente em torno de 1555.
A capitania do Rio Grande permaneceu abandonada – e seu donatário, desgastado endividado, recebeu como consolo o perdão da dívida contraída com as despesas das expedições malogradas. Faleceu em 1570, e o rei concedeu a seus herdeiros uma indenização pela reversão da mesma à Coroa portuguesa, uma vez que estes já não dispunham de condições para manter os direitos de donatários.
Invasores e re-colonização
Com o total abandono da região, os invasores estrangeiros se aproveitaram – especialmente os franceses, que, aliados aos Potiguares, contrabandeavam o pau-brasil que existia em abundância no litoral. Essa situação perdurou até quando, anos depois, foi iniciado o movimento para recuperação das posições abandonadas, que começavam a trazer inquietações à Coroa.
Sucedem-se então os períodos de re-colonização das capitanias e da instituição do governo geral. Em seguida, em consequência de movimentações hereditárias envolvendo membros das duas coroas, ocorre a incorporação política de Portugal à Espanha (a União Ibérica). Entre 1580 e 1640, a perda da independência política de Portugal significou também a invasão de sua colônia na América pela Holanda, inimiga tradicional da Espanha.
Abandonada por quase 50 anos, a capitania do Rio Grande tornou-se um refúgio de aventureiros e contrabandistas que, em parceria com os índios Potiguares, tinham fácil acesso ao contrabando do pau-brasil, bastante comum no Litoral Norte Riograndense. A re-colonização da capitania do Rio Grande tornou-se o objeto das cartas regias de 1596 e 1597, dirigidas ao Governador Geral D. Francisco de Souza.
Em cumprimento a essas cartas-régias, foi organizada uma expedição comandada por Mascarenhas Homem, capitão-mor de Pernambuco, acrescida da gente da Paraíba e mais de 700 índios de várias tribos, para fundar uma povoação e construir uma fortaleza para sua defesa.
Em meio a doenças e lutas contra invasores e índios, os expedicionários finalmente conseguiram desembarcar e iniciar a construção do Forte dos Reis Magos, em 6 de janeiro 1598, na barra do Rio Grande (nome então atribuído ao Rio Potengi).
Personagens como Jerônimo de Albuquerque e João Rodrigues Colaço, entre outros, sucederam-se na administração e implantação da capitania que, em 1607, atinge uma população de 300 habitantes, com uma concentração de 30 a 35 casas em Natal e o restante espalhado por roças e fazendas do seu entorno. As terras da região hoje correspondente ao município de São Gonçalo do Amarante, banhadas pelo rio Potengi, constituíram sesmaria concedida a João Rodrigues Colaço que comprara escravos da Guiné para ali implantar roças e construir o pequeno porto de Uruaçu.
Na sesmaria da várzea de Cunhaú, em 1604, foi construído um engenho de mesmo nome pelos filhos de Jerônimo de Albuquerque. A região dos atuais municípios de São José de Mipibu, Goianinha e Canguaretama passou a produzir cana de açúcar como extensão da demanda advinda de Recife, inclusive, para isso chegando a importar escravos de Pernambuco.
Os interesses em torno do açúcar
O açúcar havia sido introduzido no Brasil a partir da Ilha da Madeira e de São Tomé em 1530, mas foi o século XVII que veio a ser o “o século do açúcar”, devido ao grande aumento da procura por este produto na Europa, onde se tornou uma necessidade em vez de um luxo.
Tendo assumido papel de principal produto da colônia lusa, o açúcar brasileiro tinha quase 2/3 do seu comércio e transporte dominado pelos holandeses, que também concentravam a maioria das refinarias de açúcar em Amsterdã, convertida em grande centro de distribuição de açúcar para a Europa.
Com a União Ibérica e o domínio espanhola sobre as colônias lusas, acentuaram se as hostilidades entre a Espanha e a Holanda. Até então, Portugal e Holanda conseguiam manter um pacto de aliança comercial. Mas os novos fatos transformaram-se em motivo de grande preocupação para os comerciantes holandeses.
Para defender seus interesses comerciais, os holandeses buscaram então conquistar e administrar as regiões produtoras de açúcar no nordeste brasileiro. Mais do que motivados pela mera conquista territorial militar, essa estratégia foi empreendida por comerciantes em parceria com o governo, reunidos na Companhia das Índias Ocidentais – formada para promover a ocupação e exploração do Nordeste brasileiro, do litoral ocidental da África e das Antilhas, além da posterior ação no litoral oriental da América do Norte, onde viriam a fundar a cidade de Nova Iorque após deixar Recife.
Holandeses tomam Recife e Natal
Em 1624, a Bahia foi a primeira opção de invasão holandesa, uma vez que, além de ser a sede do governo geral, era também produtora de açúcar. Frustrada essa tentativa, a Companhia das Índias Ocidentais conseguiu seu intento, em 1630, dessa feita com novo empreendimento em Pernambuco.
Uma vez estabelecidos em Recife, e voltando-se para o interior, os holandeses encontraram resistência na Paraíba e voltaram-se para região do Rio Grande, que detinha excelente posição estratégica para o tráfego da área fiscal, além de interessante produção da pecuária capaz de resolver o abastecimento de carne e couro para o Recife.
Expedições de reconhecimento foram organizadas em articulação com os índios Cariris, inimigos dos portugueses. Entraram por Cunhaú, atravessando Mipubu, a maior aldeia indígena, e chegando até próximo de Natal, onde observaram e examinaram o forte dos Reis Magos. A partir das informações conseguidas e já com novas alianças negociadas com as tribos Janduhi e Oquenuçu, os holandeses organizaram uma grande expedição naval de conquista, com 14 navios e 10 companhias de soldados veteranos, que saíram do Recife em 21 de dezembro de 1631 e desembarcaram em Ponta Negra para tentar se aproximar de Natal. Foram repelidos pelas tropas do Capitão-mor Cipriano Porto Carreiro. Em 5 de dezembro de 1633, partiu de Recife uma nova expedição naval de 11 navios com forte comando militar, mais de 800 soldados, muita munição e mantimentos e um dos diretores da Companhia das Índias pessoalmente a bordo: Mathijs Van Keulen que, ao desembarcar em Ponta Negra recebeu uma comissão dos índios Tapuia favorável aos novos visitantes.
No dia 11 de dezembro de 1633, segundo o relato de Câmara Cascudo, três baterias abriram fogo simultaneamente contra o forte, enquanto um bombardeiro atirava granadas. “Toda a noite passaram dando tiros de assustamento, gritando junto às muralhas, defendidas da tiros de mosquete. Ao amanhecer da segunda-feira, 12 de dezembro de 1633, o vento batia numa bandeira branca, suspensa numa ameia meio derrocada. Era a rendição. Uma carta foi trazida e os reféns permutados. Permitiram a saída dos soldados com bagagens e as embarcações seriam facilitadas. Artilharia, paiol de munições, víveres, bandeiras e o Forte dos Reis Magos ficariam na posse da Companhia.”
Hasteadas a bandeira do Principe de Orange e o pavilhão da Companhia, os holandeses renomearam o forte como “Castelo de Keulen”, designaram o capitão Joris Gastman como seu comandante e lhe dispensaram munições, víveres, oficiais trabalhadores, 150 soldados e 70 fuzileiros para as expedições em terra, começando assim um domínio que durou mais de duas décadas.
Dominação pelo terror
Com a derrocada do forte dos Reis Magos, alguns moradores de Natal e lugares próximos migraram em direção à margem direita do rio Jundiaí e região da atual Macaiba, além do engenho Ferreiro Torto (em São Gonçalo do Amarante) e seus arredores. Aguardavam socorro das forças lusas da Paraíba e Pernambuco, o que não aconteceu. Com ajuda dos índios Janduís e tribos vindas das ribeiras de Açu e Jaguaribe, os holandeses completaram a dominação dos arredores de Natal caindo sobre o engenho Ferreiro Torto, matando seu proprietário e família, além de mais de 70 pessoas que lá se encontravam refugiadas.
Em 1634, atacaram da mesma forma o engenho de Cunhaú, onde portugueses apanhados de surpresa perderam muitos homens e o chefe da resistência local, Alvaro Fragoso, que foi feito prisioneiro. A população apavorada espalhou-se pelos campos indo ao encontro dos Janduís, auxiliares dos holandeses nessa conquista.
Ao retornar a Recife, os chefes holandeses deixaram um declaração bem clara do seu domínio: “saibam os habitantes deste país que tomamos à viva força o forte, e que o abastecemos de todo o necessário a fim de manter nossa conquista. E saibam mais, todos aqueles que desejarem ficar pacificamente morando na suas casas, que devem declará-lo no prazo de três dias. Do contrário, se usará contra eles todo o rigor, tratando os como nossos inimigos, incendiando a suas habitações e destruindo o seus bens”.
Regimento holandês
Segundo o regimento da conquista holandesa, aos habitantes que se submetessem prontamente à rendição garantiu-se suas vidas e seus bens, bem como a liberdade de consciência – desde que prestassem juramento de fidelidade às autoridades holandesas. Era compromisso da Companhia a proteção e o exercício de uma boa polícia e a aplicação da justiça competente. Da parte dos portugueses, estes deveriam comprometer-se a manter seus engenhos de açúcar e suas plantações de cana. Os holandeses divulgavam o empenho que tinham de que a população fosse bem tratada e prosperasse.
Para tanto lhes era concedida a liberdade de comércio, contanto que se sujeitassem à utilização de seus navios e ao fornecimento de mercadorias aos portugueses, satisfazendo assim o comércio de Olinda. Os que não aceitassem a soberania dos Estados Gerais, como se denominavam os dirigentes da Companhia, seriam obrigados a abandonar o país, com o confisco de seus bens imóveis – penalidade extensiva também aos religiosos, jesuítas e de outras ordens.
Um dos principais pontos do regimento era o zelo pelo exercício do culto cristão reformado, com a promessa de liberdade de consciência tanto para os habitantes católicos como para os judeus. Entretanto, os jesuítas deveriam ser desterrados e os conventos e outras associações religiosas proibidas. Para o ensino dos jovens, eram enviados da metrópole mestres que professassem a religião reformada.
Este regimento esteve em vigor até a chegada do conde Mauricio de Nassau para assumir o cargo de Governador de Pernambuco, em agosto de 1636, data em que passou a vigorar novo regimento que trouxe consigo.
Nassau e Rabbi
O novo regimento de Nassau definia as atribuições do Governo Supremo Colonial e dos demais colégios e autoridades civis e militares, e tudo que se relacionava com as relações entre governo e a igreja reformada, as autoridades locais, a instrução primária, as terras devolutas ou sem dono, as minas e pedras preciosas, bem como o tratamento aos indígenas e os moradores portugueses. Em 1640, funcionou em Recife a primeira assembleia legislativa das Américas, composta de 55 membros, presidida pelo Conde de Nassau e com a presença das Câmaras de Escabinos, Juntas da Justiça e as Freguesias ou comunas da região sob a dominação holandesa.
Nassau entendeu perfeitamente a importância de conciliar os plantadores de cana com a dominação holandesa e seus esforços conseguiram um considerável grau de sucesso neste item. Mesmo sendo um protestante convicto, numa época em que os calvinistas e católicos consideravam-se uns aos outros como inevitavelmente condenados ao fogo do inferno, Nassau deliberadamente tolerou os clérigos católicos locais, apesar da oposição dos ministros calvinistas coloniais. Nassau observou que o segredo de governar Pernambuco foi lembrar aos comerciantes holandeses a importância objetiva do seu dinheiro e dos seus bens para as suas vidas. Enquanto aos portugueses ele buscava tratá-los com cortesia e polidez excessiva e não com justiça rigorosa e imparcial. Até o final de 1641, Mauricio de Nassau governou uma área no Brasil cujo litoral possuía mais de mil quilômetros.
Em Natal, foi instituída uma Câmara dos Escabinos com um Esculteto, delegado do Supremo Conselho responsável pelo Poder Executivo. Oficialmente, Natal era citada como Potengy ou Rio Grande. A tentativa de denominação da cidade de Amsterdã não logrou êxito pela em impopularidade entre os próprios holandeses. A catequese luterana dedicou-se bastante aos índios. O Rio Grande tinha com o superintendente o diretor da Paraíba, não possuindo governo próprio uma vez que pertencia a jurisdição da capitania vizinha. Em 1637, Nassau visitou Natal sendo o fato fartamente registrado por Franz Post em várias reproduções do Castelo de Keulen. O cacique Jandui, grande aliado local dos holandeses, esteve presente às homenagens ao governador do Brasil Holandês.
Ali também está o mercenário judeu-alemão Jacob Rabbi, originário de Waldeck (Hesse, Alemanha) que, a pedido de Nassau, é mandado ao interior da Capitania do Rio Grande para infiltrar-se por quatro anos junto aos Tapuias, Cariris e Janduís. Além de servir de intérprete dos Janduís para os holandeses, sua permanência entre os índios consolidava as bases da aliança política neerlandesa–tapuia.
Tentativa de expansão e a reação lusa
Em 1638, os holandeses tentaram mais uma vez conquistar a Bahia – sem sucesso. O fato despertou a corte de Madri para a gravidade da situação brasileira, e resultou na formação da grande esquadra de D. Fernando Mascarenhas, o Conde da Torre, com a junção de forças espanholas e portuguesas em socorro da colônia. Um bem traçado plano de emboscadas e ataques generalizados aos holandeses iniciou as hostilidades, com o objetivo de levantar as populações até a chegada do apoio das tropas desembarcadas. Lutas e hostilidades de ambas as partes se estenderam desde Touros (RN) até a Bahia. Finalmente, em 1641, com a volta da autonomia política de Portugal, passou-se a uma fase de negociação de armistício com a Holanda, ainda que não cessadas as hostilidades locais de parte a parte.
Com a restauração da coroa portuguesa, em 1642, chegou à Bahia novo governador geral, António Teles da Silva. Dois anos depois, Maurício de Nassau retornou à Holanda, deixando espaço para o fortalecimento da resistência local até que, em 1645, os holandeses são batidos em Monte das Tabocas, Casa Forte, Porto Calvo e Porto Maurício.
Na Paraíba, sublevações locais são contidas por Paul de Linge, que assume também o controle do Rio Grande em 1645. Com o São Francisco perdido, a gadaria do Rio Grande passa a ser o fornecedor único e fundamental das tropas e população local.
Resistência mercenária
Ao tomar conhecimento do rompimento do trato entre Portugal e Holanda, ressurge do sertão Jacob Rabbi, o intérprete e representante diplomático junto aos Tapuias. Tendo participado da vida nômade destes nativos, Jacob Rabbi se adaptara a seus costumes e modos de viver. Jacob Rabbi foi autor de um famoso e importante relato sobre a vida e os costumes dos Tapuias. Graças a essa crônica muitos aspectos etnográficos dos Tapuias são hoje conhecidos, pois foi utilizada por vários outros autores holandeses em seus escritos sobre estes povos.
Chamado a participar da resistência holandesa contra as tentativas de retomada do domínio português na região, Rabbi passou a empreender campanhas de assaltos, destruição e assassinatos, em repressão às comunidades locais. Saqueando e roubando, Rabbi acumulou imensa fortuna em gado, roupas, terras, jóias e dinheiro. Construiu uma casa, na proximidade da Fortaleza, e casou-se com uma índia (Domingas). Formou um grupo de índios e durante quatro anos manteve um clima de insegurança, na área de sua atuação. Extremamente violento e rude no trato com os colonos, Jacó Rabbi se torna a figura mais sinistra e abominável do domínio holandês no Nordeste do Brasil.
Os massacre dos mártires
Misto de bandoleiro e aliado do regime holandês na capitania do Rio Grande, Rabbi convocou a população de Cunhaú a estar presente à missa do domingo no dia 16 de julho de 1645, na Capela de Nossa Senhora das Candeias, em Canguaretama, alegando importante comunicado do comando da Fortaleza. Durante a missa, quando o Padre André de Soveral celebrava o Santo Ofício, irromperam guerreiros aos gritos de guerra, fecharam as portas da capela e massacraram os fiéis. Ao verem que seriam mortos pelas tropas, os colonos pediram misericórdia a Jesus “entre mortais ânsias, confessaram-se ao sumo sacerdote pelo perdão por suas culpas, enquanto Padre André tinha seu coração arrancado do peito pelo jaguar da floresta”. Foram cenas de grande atrocidade: os fiéis em oração, tomados de surpresa e completamente indefesos, foram covardemente atacados e mortos pelo flamengos com a ajuda dos tapuias e potiguares. Ao perceber que iam ser mesmo sacrificados, os fiéis não se rebelaram. Ao contrário, ‘entre mortais ânsias se confessaram ao sumo sacerdote Jesus Cristo, pedindo-lhe, com grande contrição, perdão de suas culpas”, enquanto o padre André estava ‘exortando-os a bem morrer, rezando apressadamente o ofício da agonia” (Verdonk).
Saqueado o templo, passaram à Vila e à casa-forte do sítio de João Lostau Navarro, que era sogro do Tenente Coronel Joris Garstman – comandante holandês da Fortaleza Keulen. Destruíram tudo, promoveram grande carnificina e mataram o dono do sítio, onde haviam se refugiado vários colonos perseguidos.
O medo se espalhou pela capitania e por outras capitanias. Depois do massacre de Cunhaú e do assalto à casa de João Lustau Navarro, a população ficou receosa e alguns colonos portugueses da região agreste foram refugiar-se nas margens do rio Potengi, “a três léguas de Natal, se abrigando sob uma defesa murada de madeira rústica. Nessa cerca, reuniram-se uns setenta homens, acompanhados de mulheres, filhos e escravos com alguns mantimentos e poucas armas de fogo, permanecendo aí por três meses”. Descontrolados, Rabbi e seus comandados chegaram ao local e exigiram a capitulação. Os colonos resistiram, inclusive com luta e fogo. Rabbi buscou então o apoio oficial da tropa regular flamenga, na fortaleza de Keulen, que lhe cedeu um tenente e dois canhões. Os resistentes renderam-se e foram conduzidos à Fortaleza unindo-se a outros presos e refugiados.
Em 03 de outubro de 1645, doze homens foram levados rio acima até o porto de Uruaçu. Desceram e foram mortos com refinamentos de tortura, juntamente com outros resistentes apreendidos no local. Neste massacre, a milícia de Rabbi usou de mais crueldade: arrancaram suas línguas para não proferirem orações católicas, braços e pernas foram decepados, crianças foram partidas ao meio, e grande parte dos corpos foi degolada. Padre Ambrósio Francisco Ferro, vigário de Natal, mesmo vivo, foi muito torturado. Nas descrições, nota-se o contraste entre a crueldade dos algozes e a resignação e o perdão das vítimas: “Começaram a dar tão desumanos e atrozes tormentos aos homens que já muitos dos que padeciam tomavam por mercê a morte. Mas os holandeses usaram da última crueldade entregando-os aos tapuias e potiguares, que ainda vivos os foram fazendo em pedaços, e nos corpos fizeram anatomias incríveis, arrancando a uns os olhos, tirando a outros as línguas e cortando as partes verendas e metendo-lhas nas bocas…” (Santiago). O camponês Mateus Moreira, mesmo tendo arrancado seu coração pelas costas, morreu exclamando: “Louvado seja o Santíssimo Sacramento”.
Justiçamento de Rabbi e fim do domínio holandês
Quando ele cercou e destruiu o engenho Cunhaú, a propriedade já pertencia ao comandante do forte Keulen: o governador do Distrito. Gartsman julgara ousadia de Jacob Rabbi atentar contra a sua propriedade. Sentindo-se humilhado, decidiu vingar-se do malfeitor. Em nome da Companhia das Índias Ocidentais, resolveu então acabar com aquelas atrocidades e finalmente planejou a morte de Rabbi convidando-o para um jantar na casa do oficial Dirk Nulder von Mel. O alferes Jacques Boullan invadiu o recinto e, a tiros de pistola e golpes de espada, matou-o – aludindo vingança pela morte do sogro do tenente-coronel Garstman. Domingas, a viúva, tentou na justiça direitos sobre a herança, mas o espólio ficou mesmo com os holandeses.
Câmara Cascudo, estudando sua conduta no contexto da sociedade daquele tempo, disse que Jacob Rabbi reunia a unanimidade no ódio e a mais sombria recordação de sua violência bestial. Segundo ele, “a insensibilidade, a ausência de misericórdia e o egoísmo excessivo destruíram aquele homem, cuja inteligência poderia tê-lo conduzido a destino bem menos trágico, talvez glorioso”.
A morte de Jacob Rabbi causou aos holandeses um prejuízo incalculável, não somente porque perdiam eles um ótimo elemento de prestígio para os selvagens, como também porque os tapuias estavam revoltados contra o assassínio do seu amigo e pediam a punição dos culpados. O Supremo Conselho mandou abrir inquérito e, apurando a responsabilidade de Gartsman, prendeu o governador e o mandou para a Holanda. Janduí achou, porém, que aquele castigo não era suficiente e só se reconciliou com os flamengos depois que recebeu, de presente, duzentos florins, mil varas de fazenda, cem galões de vinho e 40 de azeite, duas pipas de aguardente e uma barrica de carne salgada.
Daí em diante, a jornada final do domínio holandês no Nordeste do Brasil começa com a primeira Batalha dos Guararapes em 1648; continua com a segunda, em 1649 – que acaba com o exército regular da Companhia das Índias Ocidentais – e se conclui com a capitulação dos holandeses em janeiro de 1654, na Campina do Taborda, em Recife. Em fevereiro de 1654, o Capitão Francisco de Figueroa veio a Natal receber o Castelo de Keulen encontrando o vazio e sem comando.
Beatificação e canonização dos mártires
Atualmente, os mártires são lembrados em duas datas, no dia 16 de julho em Canguaretama, e dia 3 de outubro em São Gonçalo do Amarante. Esta última data é lembrada a caráter estadual: pela lei Nº 8.913/2006 que declara feriado estadual a data.
São lugares de romarias e peregrinações a Capela dos Mártires de Cunhaú e Uruaçu em São Gonçalo do Amarante; o Santuário dos Mártires, no bairro Nossa Senhora de Nazaré em Natal, e a capela de Nossa Senhora das Candeias no antigo engenho de Cunhaú.
O começo do processo de beatificação dos Mártires de Cunhaú e Uruaçu foi aberto em 15 de maio de 1988, por Dom Alair Vilar. Agora, os mártires são canonizados pelo Papa Francisco em 15 de outubro de 2017. Com a decisão, os padres André de Soveral e Ambrósio Francisco Ferro, junto a Mateus Moreira e outros 27 leigos, entram no rol de adoração da Igreja Católica.
Fontes:
SUASSUNA, Luiz Eduardo e MARIZ, Marlene – História do Rio Grande do Norte
MEDEIROS, Rostand – Tok de História
FAUSTO, Boris: “História do Brasil”. EdUSP, São Paulo, 1995.
HOLANDA, Sérgio Buarque de: “O domínio holandês na Bahia e no Nordeste” in História geral da civilização brasileira, 1º vol., livro 4, Difusão Européia do Livro, São Paulo, 1960.
MELLO NETO, José Antonio Golsalves de: Tempo dos flamengos: influência da ocupação holandesa na vida e na cultura do Norte do Brasil. José Olympio, São Paulo, 1947.
PUNTONI, Pedro: Guerras do Brasil (1504-1654). Brasiliense, São Paulo, 1992, Coleção tudo é história nº 141.
VILLALTA, Luis: “O que se fala e o que se lê: língua, instrução e leitura” in MELLO E SOUZA, Laura de (org.): História da vida privada no Brasil, vol. 1. Cia. das Letras, São Paulo, 1997.
O post é uma compilação de textos destas fontes, amalgamadas e resumidas por texto próprio.
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